O que sabemos (e não sabemos) sobre a COVID-19
A epidemia causada pela COVID-19 mudou nossas vidas. O impacto se fez sentir no cotidiano de cada brasileiro, criança, adulto e idoso. Fomos todos obrigados a mudar muitos de nossos hábitos e quase todas as nossas atividades habituais foram atingidas. Tratando-se de uma ameaça real à saúde, fomos tomados pelo medo, angústia e desesperança. As potencialidades maravilhosas do ser humano, felizmente, o capacita para superar todo o tipo de crise, inclusive essa pela qual está passando. Uma dessas potencialidades é o conhecimento. Quando conhecemos um inimigo, por exemplo, podemos usar nossa inteligência para encontrar a melhor forma de nos proteger dele ou de derrotá-lo. Por esse motivo, todos nós buscamos informações sobre esta doença, sobre o vírus que a causa, sobre como ele é transmitido, sobre possíveis tratamentos etc. Buscamos conhecimento, mas frequentemente sentimo-nos perdidos na abundância de informação. Diante disso, naturalmente ficamos em dúvida sobre como discernir quais dentre todas as informações que recebemos são corretas e úteis.
No início da pandemia, de fato tínhamos menos informações, e a ciência ainda estava se esforçando para compreendê-la. Hoje, depois de mais de um ano de estudos e de observações, a ciência já desenvolveu muito conhecimento útil sobre o vírus SARS-CoV-2 e sobre a epidemia. Nesse ponto, sinto-me obrigado a fazer um aparte, e discutir a que me refiro quando uso a palavra “ciência”. Em primeiro lugar, precisamos ter consciência de que ciência nada mais é do que conhecimento baseado em evidências. Os cientistas raciocinam de modo muito semelhante ao modo como uma boa dona de casa faz, pois assim como um cientista, ela usa as evidências que tem à sua disposição para aprimorar a arte de cozinhar e de limpar as diferentes partes da casa, acumulando com o tempo conhecimento sobre o que dá certo e sobre o que dá errado. O exemplo da dona de casa é apenas um entre muitos possíveis, pois todo profissional que usa sua inteligência em seu ofício procede de maneira semelhante ao cientista. Um cientista é um profissional como os outros, e pode ser mais ou menos bem sucedido em seu ofício. A ciência resulta não do conhecimento de uma única autoridade científica, mas do conjunto de conhecimentos consolidados pela análise e interpretação minuciosa das evidências. Confiamos na ciência não por adesão emocional, mas pela expectativa de que o ser humano é capaz de compreender a realidade mais acuradamente quando se somam as inteligências livres para inquirir e questionar.
Portanto, sempre que me referir à ciência neste artigo, não estou me referindo a algo distante, a um ser abstrato a que somente especialistas em uma torre de marfim tem acesso. Eu, particularmente, rechaço a “cultura dos especialistas”, isto é, esta noção de que cidadãos comuns precisam confiar no que dizem os especialistas sem questionar. Por outro lado, também rechaço o posicionamento dos que rejeitam tudo o que dizem os especialistas, sem escutar e ponderar. Devemos cultivar o hábito de reflexão, de escuta, de diálogo interior e observação exterior, aceitando que é possível conviver com incertezas ou conhecimentos provisórias e incompletos. Se por um lado é necessário reconhecer que outras pessoas podem ter conhecimentos verdadeiros e úteis a nos oferecer, por outro lado não podemos acreditar piamente e automaticamente diante de tudo o que diz aquele que é declarado especialista.
Neste artigo, pretendo responder algumas questões comuns a respeito da epidemia. Elaborei as respostas na forma de reflexão e discussão, usando as melhores evidências e referências que encontrei. Estas respostas resultam do meu esforço pessoal para compreender a epidemia por meio de uma pesquisa baseada na literatura científica e nas minhas próprias análises. Trata-se de uma visão parcial da realidade e está longe de ser a última palavra sobre o assunto. Em todo caso, sou motivado a partilhar meu conhecimento acreditando que muita informação pode ser útil.
Espero que esta leitura seja útil e agradável ao leitor. Ficarei feliz de ler as sugestões, críticas, correções e informações suplementares que o leitor poderá oferecer. O conhecimento avança e se aprimora por um processo autocorretivo que resulta do questionamento sobre a validade das evidências e avaliação criteriosa da lógica e dos modelos empregados na intepretação das evidências. Não se trata de uma “democracia”, onde todas as opiniões têm a mesma validade, mas de um processo de depuração, onde apenas as críticas logicamente bem fundamentadas efetivamente contribuem para o debate.
Qual foi o impacto da COVID-19 no Brasil em 2020 em número de mortes?
Pelas melhores evidências que temos, podemos afirmar que a COVID-19 matou em 2020 mais cidadãos brasileiros do que qualquer outra doença respiratória no mesmo período. Aproximadamente um a cada sete brasileiros que morreram em 2020 morreram de COVID-19. Essas afirmações não são feitas ao acaso, mas estão baseadas nos dados do Portal da Transparência dos Cartórios de Registro Civil do Brasil[1].
Apenas com base nesses dados podemos aprender muito sobre a epidemia e seu impacto no ano de 2020. Foram registrados 1.455.171 registros de óbitos emitidos em 2020, sendo que desses, 197.589 foram de COVID-19. Na análise por faixa etária, 76.9% dos óbitos foram de indivíduos com mais de 60 anos, 89.2% foram de indivíduos com mais de 50 anos e 95.5% foram de indivíduos com mais de 40 anos. A maior letalidade entre os mais idosos da população é fato notório, e isso tem sido observado em todos os países[2]. Houve de fato muitos casos de óbitos entre jovens, e os meios de comunicação muitas vezes destacaram isso, talvez com a intenção de “provocar medo”. A verdade deve prevalecer, na minha opinião, mesmo que ela possa levar alguns jovens a se expor à infecção por acreditarem que dificilmente desenvolverão a forma grave da doença. Talvez seja mais eficaz conscientizar os jovens não pelo medo de se infectarem, mas pelo medo de infectarem seus pais e avós. Não se pode negar nem mascarar o fato de a COVID-19 ser muito mais letal para idosos, por mais nobre que sejam as intenções.
Gostaria ainda de destacar outro resultado importante: 57,2 % dos óbitos foram de homens e 42.8% de mulheres. Essa diferença não tem como ser explicada por mero acaso, pois a faixa de erro dessas estimativas, calculada da mesma forma como se calculam as faixas de erro de pesquisas eleitorais, é de apenas 0,2%. Eis aqui outro fato notório, já amplamente aceito pela comunidade científica: a letalidade da COVID-19 é maior entre homens. Isso se observa não somente no Brasil, mas também na maior parte dos outros países. A razão para isso não é inteiramente conhecida, mas conjectura-se vários possíveis fatores, tais como diferenças hormonais, diferenças imunológicas baseadas no sexo, diferenças de estilo de vida e de comportamento preventivo[3]. Portanto, a diferença da letalidade entre os sexos pode ter origem biológica ou comportamental, ou ambas, mas a ciência ainda não tem uma resposta definitiva. Para complicar mais o problema, alguns países, tais como a Índia e a Eslováquia, apresentaram letalidade superior entre as mulheres[4].
Algumas pessoas questionam a análise baseada nos dados de registro de óbitos dos cartórios. Um argumento frequente consiste em colocar em dúvida se a causa da morte tem sido corretamente identificada como COVID-19. Para investigar mais a fundo essa questão, podemos nos perguntar se houve de fato um excesso de mortes em 2020, isto é, se houve um número de óbitos acima do esperado em 2020 na comparação com os anos anteriores. Para responder essa pergunta, podemos mais uma vez usar os dados de óbitos fornecidos pelos cartórios de registro civil, admitindo-se que os registros de óbitos pelos cartórios civis são fiéis à realidade. A Figura 1 mostra o gráfico de óbitos totais pelo ano em que foram registradas. Nesta figura, vemos uma tendência de alta desde 2015. Isso ocorre em razão do envelhecimento da população brasileira, que faz com que a taxa de mortalidade aumente ano a ano. Do ano de 2015 ao ano de 2019, a tendência de crescimento foi, com boa aproximação, linear. Por isso, supondo a manutenção da tendência passada, esperava-se mesmo um aumento do número de óbitos em 2020. No entanto, uma análise estatística detalhada demonstra que houve um aumento de óbitos acima do esperado. Dentro da região delimitada pelas curvas pontilhadas existe 95% de probabilidade de que os dados oscilem por mero acaso. O ponto em vermelho, que representa o número de mortes em 2020, está fora dessa região, indicando que houve em 2020 um excesso de mortes que não pode ser explicado por mero acaso. Não há dúvidas, portanto, de que houve um excesso de mortes em 2020.
Agora resta-nos apenas responder se esse excesso de óbitos é explicado pelas mortes por COVID-19. Como era de se esperar, o desvio numérico com relação ao valor esperado de óbitos em 2020 é consistente com o número de mortes totais por COVID-19 neste mesmo ano. Poder-se-ia aventar a hipótese de que essas mortes registradas como COVID-19 na verdade tiveram outras causas. Bom, admitindo verdadeira esta hipótese, teríamos que oferecer então uma explicação alternativa para o excesso de mortes. Uma possibilidade poderia ser o aumento de mortes por outras causas. No entanto, não observamos nos dados um aumento apreciável de mortes por outras causas, pelos menos não um aumento suficientemente elevado para explicar o excesso de óbitos. Por fim, alguém poderia argumentar que a maioria das causas de mortes atribuídas à COVID-19 podem ter sido confundidas com outras doenças respiratórias. Neste caso, teríamos que admitir a existência de uma outra ou outras epidemias, sistematicamente confundidas com a COVID-19. Seria razoável supor tantas atribuições incorretas? Além disso, deve-se ter em conta que a maior parte das mortes atribuídas à COVID-19 ocorreram entre indivíduos hospitalizados, a maioria dos quais ou foram submetidos a testagens confirmatórias ou apresentaram os sintomas típicos. A hipótese de um “grande engano” coletivo só pode ser sustentada admitindo-se um “grande engano” na atribuição da causa de morte por doenças respiratórias no ano de 2020. Na minha opinião, isso é altamente improvável.
O que posso fazer para evitar a infecção por COVID-19?
Para estabelecer as melhores estratégias de proteção pessoal contra a COVID-19, precisamos compreender como o vírus SARS-CoV-2 é transmitido. A questão sobre a origem exata da contaminação pelo SARS-Cov-2, o vírus que causa a doença COVID-19, é um bom exemplo de problema em que é muito difícil aplicar todos os recursos do método científico. Sabemos por observação que as contaminações ocorrem após contato com pessoas infectadas e que as gotículas exaladas pelo nariz e pela boca contém vírus. Não há dúvidas sobre isso. Disso deduzimos que a transmissão pode ocorrer por algum tipo de exposição a partículas ou objetos que contém o vírus. Podemos ir mais a fundo, e nos perguntar sobre como isso acontece, isto é, quais são as rotas de contaminação, se por partículas grandes de saliva quando inaladas ou ingeridas em contatos próximos entre as pessoas, se por inalação de aerossóis contaminados presentes em lugares fechados, se por contato das mãos contaminadas com os olhos e às mãos etc. Responder essa questão é, no entanto, extremamente difícil para ciência, pois exige rastrear todas as superfícies e aerossóis com que um indivíduo teve contato, sequenciar o vírus do infectado, o vírus encontrado no objeto infectante e eventualmente também o vírus na fonte biológica primária. Fazer isso para um único indivíduo já seria difícil, mas para chegar a alguma conclusão de maior valor científico seria necessário fazer isso para muitos indivíduos! Portanto, sendo muito difícil mapear exatamente qual é a via de contaminação mais comum, resta para a ciência identificar todas as possíveis vias, estimar as mais e menos prováveis, e estabelecer estratégias para se proteger de cada uma delas. Eis o que pretendemos fazer a seguir.
Em primeiro lugar, devemos ter em mente que o vírus nunca é transmitido isoladamente, nu, como se fossem pequenas sementinhas nanométricas se movimentando sobre o ar. Na verdade, o vírus permanece mergulhado ou aderido a um substrato, que geralmente são pequenas gotículas líquidas ou sólidas, chamadas de aerossóis. Esses aerossóis são pequenas partículas sólidas ou líquidas que permanecem suspensas no ar por muito tempo, podendo ser deslocada pelo vento por longas distâncias antes de cair. Quando as gotículas são maiores, geralmente com diâmetro superior a 100 micrometros, e caem rapidamente sob a ação da gravidade, não são consideradas aerossóis pelos “cientistas de aerossóis”.
Nosso trato respiratório exala gotículas quando falamos, tossimos ou espirramos. A quantidade de gotículas expelidas é maior quando espirramos do que quando tossimos, e maior quando tossimos do que quando falamos. Quando uma pessoa fala, tosse ou espirra ela gera uma espécie de “nuvem” de aerossóis em sua proximidade, que vai diminuindo com a distância (ver Figura 2). A maior parte das partículas cai no solo, próximas da sua origem, mas algumas podem ser transportadas pelo vento para posições mais distantes. Essas gotículas podem ter uma variedade grande de diâmetros, sendo que as menores demoram mais tempo para cair. Além disso, as gotículas podem diminuir de tamanho, descamar ou quebrar no ar. Testes laboratoriais demonstram a carga viral média das partículas é proporcional ao seu tamanho. Gotículas muito pequenas terão pouco ou nenhum vírus, enquanto as grandes podem ter muitos.
Dessas informações já podemos tirar algumas conclusões. Se você se encontra na proximidade de uma pessoa infectada, e fala com ela por algum tempo, próximo dela, como em um bar ou uma festa, ou sentado lado a lado em um sofá, você também estará dentro dessa nuvem de aerossóis que ela gera ao seu redor. Mesmo que a quantidade de partículas nessa nuvem não seja tão grande — supondo que a pessoa não esteja tossindo ou espirrando o tempo todo — você receberá, pouco a pouco, gota a gota, o influxo de aerossóis de todos os tamanhos possíveis, potencialmente contaminados. Quanto mais tempo dentro dessa nuvem de aerossóis, maiores as chances de se contaminar. Agora, se você está distante dessa pessoa, a uma distância superior a 2 metros, pode até acontecer de alguma gotícula chegar até você, mas, como vimos, será uma gotícula menor, com menor carga viral, e a probabilidade de atingi-lo será menor. Esses são os fundamentos científicos do protocolo que recomenda manter distância nos contatos com pessoas desconhecidas ou de fora do círculo familiar íntimo.
O uso de máscaras se faz especialmente importante para se proteger dos aerossóis, pois elas são capazes de barrar parte dessas gotículas, em menor ou maior grau, dependendo do tipo de máscara. No que diz respeito às máscaras, há dois mitos que precisam ser derrubados: o mito de que máscaras não barram nenhum vírus e o de que os barram completamente. Na realidade, a máscara é uma barreira parcialmente eficaz, mas suficientemente efetiva para que seu uso seja indicado. Estudos mostram que máscaras cirúrgicas no padrão N95/PFF2 diminuem de três a quatro vezes a probabilidade de infecção pelos coronavírus humanos que causam gripes comuns. Outros estudos mostram que máscaras no padrão N95/PFF2 diminuem em média 6 vezes o risco de exposição a aerossóis e gotículas contaminadas por vírus. As máscaras no padrão N95/FFP2 costumam ser caras e mais indicadas aos profissionais de saúde, mas mesmo máscaras de tecido, amplamente utilizadas no Brasil, podem reduzir de 2 a 4 vezes a exposição aos aerossóis e gotículas contaminadas por vírus. Para mais informação sobre o assunto, o leitor pode consultar este interessante artigo científico de revisão, escrito por cientistas de diversas áreas[5].
Os aerossóis provenientes diretamente das nossas vias nasais e orais não são a única forma de transmissão do vírus. Há também a possibilidade de que aerossóis sejam gerados nas descargas de vasos sanitários contendo urina ou fezes contaminada. Banheiros públicos, por exemplo, são locais onde há risco alto de contaminação. Compartilhar um banheiro doméstico com pessoa contaminada também é um fator de risco. Outra via de transmissão são os chamados fômites. Os fômites são objetos que podem ficar altamente contaminados e se transformam eles mesmos em vias de transmissão. Tome-se como exemplo a chupeta de uma criança infectada com COVID-19. Imaginemos, por exemplo uma situação em que essa criança entra em um consultório médico e a mãe coloca a chupeta da criança em cima de uma mesa, contaminando-a, e em algum momento depois o médico põe a mão sobre a mesa e inadvertidamente leva a mão aos olhos ou à boca. Neste caso, a chupeta terá funcionado como fômite. Os fômites representam um risco adicional, e podem nos pegar desprevenidos ou de surpresa. Por isso, é necessário prestar a atenção para certos objetos que são tocados por muitas pessoas, tais como portas e botões de elevador, portões de condomínio etc., habituando-se a lavar as mãos ou usar álcool em gel tão logo tocamos neles. As próprias máscaras, se não são utilizadas corretamente, podem se transformar em fômites. Por isso, é necessário cuidar para que as máscaras reutilizáveis sejam sempre lavadas após uso e que não sejam colocadas em contato com superfícies potencialmente contaminadas durante e após o uso.
Com toda essa informação, podemos nos perguntar também sobre as melhores estratégias de proteção. Aprendemos como nos proteger, mas é preciso também estabelecer estratégias, pois não é possível viver sem nunca tocar, conversar e interagir com as pessoas. Existe um pequeno âmbito familiar ou comunitário em que inevitavelmente será impossível ou impraticável aplicar as medidas preventivas mencionadas anteriormente. Esse é o círculo íntimo familiar, das pessoas que moram na mesma casa, que devem ordinariamente manter uma convivência normal. No caso extraordinário de uma pessoa da casa se infectar, então pode-se quarentená-la enquanto estiver infectada, isolando-a em um cômodo da casa e reservando-lhe um banheiro exclusivo. Se isso não for possível, pode-se tomar um cuidado extra com a limpeza dos cômodos, objetos e banheiro usados por essa pessoa, e garantir que os locais onde a pessoa infectada se encontra permaneça sempre bastante ventilados.
Existe, além do círculo familiar íntimo, um círculo de amigos e familiares distantes, que em tempos normais visitamos com frequência. Em uma pandemia a diminuição da transmissão coletiva pode diminuir muito se a maioria dos indivíduos simplesmente reduzir ao mínimo o número de contatos próximos desnecessários. Por isso, uma excelente estratégia, ainda que difícil do ponto de vista emocional e psicológico, está em reduzir os contatos próximos com pessoas desse círculo estendido, evitando-se as festas de família, encontros e festas entre amigos em locais fechados, refeições e visitas domésticas, festas de casamento e batismo, visitas a parentes idosos etc. Em resumo, a estratégia consiste em restringir os contatos próximos apenas ao círculo íntimo familiar, evitando-se ao máximo o contato próximo com pessoas fora dele.
Tendo dito isso, não podemos fechar os olhos para as enormes dificuldades que indivíduos jovens terão para colocar em prática essas recomendações, e seria talvez inflexível de nossa parte simplesmente apontar como imoral a atitude de muitos deles que fazem festas clandestinas ou continuam se encontrando como se nada estivesse acontecendo. Já há muitos anos, Fábio Júnior cantava que “nem por você, nem por ninguém, não me desfaço dos meus planos, dos meus 20 e poucos anos”. Os jovens de ontem são os adultos de hoje, e a natureza típica do jovem não muda muito. Para alguém com família constituída, as recomendações acima podem ser fáceis, mas para um jovem de 20 e poucos anos pode ser quase como tirar-lhe a vida. Neste caso, creio que a melhor solução está em criar uma cultura de “disciplina consciente”, orientando os jovens que não querem viver a quarentena a evitar contatos próximos com idosos, sejam pais, tios ou avós. Se não é possível limitar totalmente a liberdade dos jovens, pode-se ao menos exigir-lhes que assumam as consequências de suas escolhas.
Lockdown funciona?
“Lockdown funciona?”: esta é umas das questões que geram os mais acalorados debates. Para responder a essa questão, é necessário recorrer a alguns conhecimentos da epidemiologia. Além disso, como em qualquer argumentação cientifica, é necessário que nosso objeto em questão, isso é, o “lockdown” esteja bem definido.
Vamos começar pela questão epidemiológica. Uma doença como a COVID-19, causada por um vírus respiratório, o SARS-CoV-2, é transmitida de indivíduo para indivíduo por contato direto. Em princípio, o vírus também pode ser transmitido por contato com superfícies contaminadas e aerossóis que estão no ar. No entanto, a CDC (Center of Diseases Control), nos EUA, e a WHO (World Health Organization)[6], consideram que o a transmissão da COVID-19 acontece principalmente por contato direto entre indivíduos, embora também reconheçam a possibilidade de transmissão por superfícies e pelo ar contaminado com aerossóis, sobretudo em locais fechados. A hipótese de que o principal meio de propagação da COVID-19 acontece por contato direto entre indivíduos fundamenta a maior parte das intervenções de distanciamento social impostas pelos governos. Se esta é a principal forma de transmissão, então a transmissão da doença poderia em tese ser barrada ou desacelerada por qualquer política que implicasse na diminuição de contatos entre indivíduos ou na redução da probabilidade de contaminação nos contatos entre indivíduos. Portanto, neste caso, a epidemiologia estabelece duas estratégias complementares de diminuir a propagação de uma epidemia: (1) pela diminuição de contatos entre as pessoas; (2) pela diminuição da probabilidade de contaminação quando os contatos diretos entre as pessoas são inevitáveis.
Intervenções governamentais que proíbem atividades geram aglomerações ou que proíbem a abertura do comércio dito “não essencial” ou que impõe o fechamento de escolas, toques de recolher e restrições de circulação, são todas intervenções que buscam, à força, diminuir o contato entre as pessoas (estratégia 1). Por outro lado, intervenções que obrigam os cidadãos a usar máscaras em locais fechados e/ou abertos buscam a diminuição da probabilidade de contaminação por contato direto (estratégia 2). Se aceitamos a hipótese de que o principal meio de propagação da COVID-19 acontece por contato direto, e aceitamos a hipótese de que as intervenções governamentais são efetivas na implementação das estratégias 1 e 2, então decorre logicamente das premissas que a intervenção governamental produz efetivamente a diminuição o número de novas infecções, suprimindo ou mitigando a epidemia. A efetividade dessa diminuição de novas infecções dependerá da efetividade somada de todas as intervenções governamentais, podendo ser maior ou menor dependendo de vários fatores.
É muito importante perceber que na realidade a intervenção governamental não é a causa primária da diminuição de novas infecções, mas sim a mudança de comportamento dos indivíduos. A intervenção governamental é uma forma de forçar essa mudança de comportamento, e poderíamos nos questionar até que ponto ela é eficaz ou desejável em uma sociedade livre. Se os indivíduos optassem livremente por mudar de comportamento, por pura disciplina consciente e conhecimento perfeito de todos os protocolos, então simplesmente não seria necessária nenhuma intervenção governamental, a não ser talvez fornecendo subsídios para apoiar o desejo da população.
Vamos agora responder à segunda questão: o que é “lockdown”? A bem da verdade, a palavra “lockdown” tem sido utilizada de maneira frouxa para significar vários tipos de intervenção governamental que implicam em restrições compulsórias de circulação, comércio e associação de pessoas. Para fins práticos, vamos então definir “lockdown” deste modo, ou seja, qualquer conjunto de medidas ou intervenções governamentais que envolvem restrições compulsórias de circulação, comércio e associação de pessoas. Essa definição confere uma distinção entre “lockdown” e distanciamento social, pois em princípio este último poderia ser instituído por adesão voluntária ou estímulos governamentais, enquanto o primeiro é sempre imposto. Evidentemente, o grau e extensão do “lockdown” pode variar muito, de modo que podemos falar em “lockdowns” menos ou mais restritivos.
Com todos esses elementos em mãos, podemos compreender que nem sempre o “lockdown” funciona. Por exemplo, um governo poderia por decreto mandar fechar todo comércio que considera não essencial e proibir cultos e aglomerações em espaços públicos. No entanto, os cidadãos poderiam respeitar os decretos, mas continuar se reunindo com frequência nas casas, com amigos, inclusive aumentando a frequência de festas privadas. Neste caso, o efeito desejado pelos formuladores da política corre o risco de ser enfraquecido ou anulado pela não conformidade da população. Portanto, a adesão da população é condição necessária para a efetividade do “lockdown”.
Em uma situação limite, ideal, em que o governo tivesse total controle sobre o comportamento dos cidadãos, é evidente que um “lockdown” teria uma efetividade proporcional à intensidade das medidas restritivas. O que traz complexidade ao problema do mundo real está em dois fatores: (i) a adesão imperfeita dos cidadãos às medidas e (ii) as implicações negativas legais, econômicas, materiais e psicológicas das medidas restritivas. A adesão imperfeita dos cidadãos às medidas impostas raramente é um problema moral, mas frequentemente um problema social. Em um país como o Brasil, por exemplo, o apoio comunitário entre membros próximos de uma comunidade e a coexistência de idosos com seus filhos e netos é um fator que alivia a pobreza e a vulnerabilidade social. Para esses estratos da sociedade, o efeito desejado de intervenções governamentais mais restritivas pode ser simplesmente inalcançável. Portanto, tanto a arquitetura das políticas públicas de intervenção quanto as análises científicas sobre sua eficácia precisam levar em conta fatores sociais e culturais.
Até aqui desenvolvemos um raciocínio dedutivo, racionalista, e o mais “empiristas” poderiam questionar: “mas o que dizem os dados?”. Há vários estudos empíricos, que vamos discutir a seguir, mas para interpretar corretamente os resultados, temos que entender que a evolução epidêmica, em qualquer país, acontece de forma não controlada. A experimentação, que é um importante pilar do método científico, necessita de condições experimentais controladas para produzir conclusões inequívocas. Estatísticas baseadas em dados do histórico da epidemia de muitos países são úteis e válidas, devem ser analisadas com cautela, pois podem não ter informação suficiente para separar a contribuição de cada tipo intervenção.
Em artigo recente[7], a Gazeta do Povo abordou um trabalho que saiu na revista Nature Human Behaviour[8], que acredito ser um dos estudos mais rigorosos e completos já publicados. Este estudo usa um banco de dados contendo informações sobre diversas classes de intervenções governamentais, agrupando-as em oito classes principais, tais como distanciamento social, comunicação sobre riscos, restrição de viagem, rastreamento e testagens, investimento no sistema de saúde, entre outros grupos. O estudo considera ainda diferentes níveis dentro de cada uma dessas classes, sendo capaz de avaliar, por exemplo, quais medidas de distanciamento social tiveram maior contribuição na redução da propagação da epidemia. A partir de várias análises estatísticas, o estudo conclui que as medidas de distanciamento social, restrições de viagem, investimento em sistema de saúde e comunicação de riscos foram as que tiveram maior impacto na redução da propagação da epidemia na primeira onda em 2020, mas nenhuma intervenção foi capaz de suprimir sozinha a epidemia. Conclui-se, portanto, que apenas medidas de distanciamento social podem não ser suficientes.
Apesar disso, o estudo concluiu que o distanciamento social foi a classe de medidas com maior impacto, destacando-se as intervenções voltadas à diminuição de aglomerações pequenas. A adoção do teletrabalho, por exemplo, é uma medida de diminuição de aglomerações pequenas.
É interessante notar que a imposição de um “lockdown nacional” teve um efeito marginal pequeno sobre outras medidas de distanciamento social. Isso corrobora a tese de que mais importante do que “lockdown” por “lockdown”, é garantir a diminuição de contatos entre pessoas em locais aglomerados, em especial pequenas aglomerações. Portanto, se uma intervenção logra atingir esse fim sem precisar decretar um “lockdown” total, ela ainda assim será efetiva, mas com menor prejuízo econômico.
Há ainda outro resultado interessante: a comunicação de riscos sobre a epidemia teve, no conjunto dos países analisados, impacto apreciável sobre a diminuição da propagação da epidemia. Esse resultado corrobora a tese de que a mudança do comportamento das pessoas é um fator essencial. Uma campanha ampla e bem-organizada de conscientização é um bom exemplo de medida governamental efetiva, pouco intrusiva e relativamente barata. O estudo ainda demonstra que o fechamento de fronteiras é um fator importante, assim como a disponibilidade de equipamento de proteção individual.
Os dados mostram que, na média de todos os países que divulgaram informação sobre suas intervenções, há correlação entre intervenções governamentais e diminuição da velocidade de propagação da epidemia. No entanto, não é o “lockdown” propriamente dito que funciona, mas sim a mudança de comportamento da população. A grande questão que deve ser endereçada pelos formuladores de políticas públicas, interessados em combater a epidemia de modo inteligente, é: quais são as intervenções mais efetivas e eficazes, com menor impacto econômico e menor prejuízo às liberdades individuais? Para responder essa questão é imprescindível que os políticos sejam auxiliados pela comunidade científica, e que a comunidade científica consiga articular e integrar os conhecimentos das diversas áreas — epidemiologia, infectologia, biologia, matemática, estatística, economia, sociologia, filosofia etc.
A COVID-19 vai passar naturalmente por imunidade de rebanho?
Essa é uma outra questão que gera acalorados debates. Neste debate, todos os envolvidos concordariam sobre um possível fim da epidemia, mesmo na ausência de um tratamento ou vacina. O ponto de grande divergência está na opinião, defendida no manifesto de Great Barrington[9], de que a melhor estratégia para enfrentar a epidemia é deixar que indivíduos jovens, menos susceptíveis a sintomas graves e severos da doença, se infectem para adquirir proteção imunológica. O fundamento desse raciocínio é o seguinte: como a maior parte da população da grande maioria dos países é jovem, então esse grande contingente populacional com proteção imunológica interromperia a uma certa altura a cadeia de transmissão da epidemia, beneficiando os mais velhos.
Mas antes de discutir a estratégia da “imunidade de rebanho natural”, gostaria de trazer novos elementos sobre epidemiologia matemática, que servirá de subsídio para nossa argumentação posterior. Nós sabemos que a COVID-19 se propaga rapidamente em um cenário de total normalidade social e econômica. Existe um parâmetro que mede essa força de propagação da epidemia, o famoso número de reprodução básico, R0. Este número mede quantas pessoas em média um indivíduo infectado contamina durante o período em que está contaminado, no início da pandemia, onde todos os seus contatos são indivíduos susceptíveis. Um jovem que tenha se infectado e transmitido o vírus apenas para um irmão e sua mãe, por exemplo, terá contribuído com um fator de reprodução 2. Se fosse possível contabilizar todos os infectados no início da epidemia e todos os indivíduos a quem transmitiram a doença, então seria possível calcular uma média de quantas infecções um indivíduo contaminado causa. Essa média é o R0. Para o surto de 2020, o número de reprodução básico de COVID-19 foi estimado entre 2,0 e 3,0[10]. Note que o R0 não é uma grandeza de valor exato, pois não depende apenas das características intrínsecas do vírus, mas também dos padrões e frequências das interações interpessoais em uma sociedade ou comunidade.
O número de reprodução básico é importante pois ele permite estimar qual é a fração da população que deve ser infectada até que a propagação da epidemia ser torne insustentável. Um modelo matemático simples, chamado de SIR (Susceptible-Infected-Recovered), permite obter uma fórmula da imunidade de rebanho, que é 1–1/R0. No caso de um R0 igual a 2,0, esse a fração é 1–½ = ½ ou 50%. O resultado é intuitivo; depois que 50% foram infectados, o nosso jovem do exemplo, em vez de contaminar seu irmão e sua mãe, contaminará apenas sua mãe, pois seu irmão provavelmente já foi contaminado e tem imunidade. A partir deste ponto, novas infecções vão ficando cada vez mais raras. Esse modelo considera o caso mais otimista em que todos os recuperados têm imunidade vitalícia e perfeita, e não tem nenhuma chance de se infectarem de novo.
Consideremos o caso do Brasil, que tinha uma população estimada em 220 milhões em 2020, e façamos uma rápida estimativa. Para atingir a imunidade de rebanho, vamos considerar, no melhor dos casos, que 50% da população precisa se infectar. Isso significa que 110 milhões de pessoas terão que se infectar em algum momento. Vamos agora estimar, desses 110 milhões, quantos teriam morrido. Para isso, vamos usar um outro parâmetro, o IFR (Infection Fatality Rate), ou razão entre óbitos acumulados e infetados acumulados. Para estimar esse parâmetro, não é suficiente dividir o número de óbitos pelo número de casos notificados, pois muitos que se infectam não são notificados nem entram nas estatísticas. Para estimar esse parâmetro é necessário usar métodos estatísticos elaborados, sendo que os trabalhos dedicados a isso estimam o IFR entre 1% e 0,5%, a depender do perfil demográfico e do país. Se o IFR no Brasil for de 0,5 %, no caso mais otimista, então podemos estimar o número de mortes necessário para atingir a imunidade de rebanho em 550 mil. No caso mais pessimista, esse número poderia chegar em 1,1 milhões de óbitos. No dia em que escrevia esse texto, este número estava em 378 mil. No início da pandemia, um número tão alto parecia exagero; hoje a estimativa de 550 mil a 1,1 milhões já não soa tão absurda.
É importante notar que essas estimativas foram feitas supondo que todos os indivíduos recuperados têm proteção imunológica vitalícia e perfeita. Logicamente, se a proteção imunológica após a recuperação for parcial ou temporária, a situação piora. Alguns autores acreditam que a epidemia pode nunca se extinguir, passando a um outro estado de equilíbrio, chamado de equilíbrio endêmico[11]. A catapora, por exemplo, é uma epidemia de equilíbrio endêmico, pois embora a imunização natural seja eficaz, o vírus contamina rapidamente as crianças pequenas, que não tem imunidade, e a doença permanece ativa sem prazo de expiração, sem nunca se extinguir. Os coronavírus humanos, que causam gripe, chamados de HCoV, também são endêmicos. Eles sobrevivem por um mecanismo diferente da catapora: neste caso, as pessoas vão se infectando ao longo da vida, adquirindo uma proteção cada vez mais robusta, de tal forma que indivíduos mais velhos já terão desenvolvido uma boa proteção, enquanto os jovens permanecem mais susceptíveis. Os mesmos autores que sugerem a possibilidade de a COVID-19 se tornar endêmica também sugerem que ela pode se tornar semelhante à gripe causada pelos HCoVs. Em geral, doenças endêmicas causam relativamente poucas mortes por ano, mas geralmente são as doenças que produzem os maiores números de fatalidades no cômputo acumulado ao longo dos anos.
A bem da verdade, não sabemos se a COVID-19 vai passar ou se vai se tornar endêmica. O que sabemos, com grande probabilidade, é que se deixarmos ela livre para circular, sem nada fazer, o estrago em termos de óbitos não é de se desprezar, mesmo no caso mais otimista. Um defensor das teses da declaração de Great Barrington poderia argumentar que a estratégia funcionaria se os idosos e indivíduos do grupo de risco ficassem rigorosamente isolados e os jovens bem soltos para a epidemia se espalhar muito rapidamente. Desse modo, argumentaria, a imunidade de rebanho seria atingida rapidamente e os idosos poderiam ser liberados depois de poucos meses. Esse raciocínio é muito perigoso por dois motivos: (1) pode ser impraticável isolar os idosos, sobretudo onde a coexistência com pessoas mais jovens é comum; (2) a COVID-19, embora menos letal e severa para os jovens, produziria uma demanda enorme sobre o sistema de saúde em um cenário de estímulo ao contágio, colocando em risco a vida de dezenas de milhares de jovens em um país com a população do Brasil.
Por fim, alguém poderia dizer que países como Suécia seguiram a estratégia de imunidade de rebanho, tendo tido um sucesso maior do que muitos países que fizeram lockdown nacional. Isso é falso, pois a Suécia não usou uma estratégia de imunidade de rebanho, mas sim uma estratégia de conscientização, cooperação da população, e restrições a grandes e pequenas aglomerações sem impor um “lockdown”. O Japão é outro exemplo de país que teve sucesso com uma estratégia de conscientização e cooperação, tendo dispensado medidas mais drásticas como o “lockdown” nacional.
Por fim, creio que seja interessante comentar sobre uma outra opinião comum, segundo o qual a queda da curva de mortes e de novas infecções depois da primeira onda ocorreu por conta da imunidade de rebanho. Vários países, inclusive o Brasil[12], conduziram estudos sorológicos durante e depois da primeira onda, confirmando que os casos positivos estavam muito abaixo dos 50% esperados em caso de imunidade de rebanho, salvo algumas poucas cidades na região norte do Brasil. Possivelmente a imunidade de rebanho natural pode ter tido algum papel na desaceleração da epidemia em alguns locais isolados, com altíssima prevalência da doença, mas isso não ocorreu na grande maioria das populações testadas no Brasil. Essas observações são consistentes com o que se observou depois com a eclosão da segunda onda da epidemia no Brasil, nos países europeus e mais recentemente nos outros países da américa latina.
As vacinas são a solução para a COVID-19?
A resposta para essa pergunta poderia parecer óbvia, mas não é. É necessário investigar as próprias vacinas um pouco mais a fundo para responder a essa questão. De fato, se tivéssemos uma vacina que conferisse proteção total e vitalícia, com segurança, sem dúvidas essa vacina seria uma solução definitiva. No entanto, as vacinas oferecem um grau variado de proteção, e isso tem impacto sobre sua efetividade no combate à epidemia.
As considerações que fizemos acima para estimar a fração necessária para se atingir a imunidade de rebanho se aplicam no caso das vacinas também. Na melhor das hipóteses, supondo um R0 médio de 2 para a COVID-19, seria necessário vacinar 50% da população. Para uma vacina de dose única, seriam necessárias no Brasil por volta de 110 milhões de aplicações ou 220 milhões no caso de uma vacina de duas doses. No caso em que o governo conseguisse cumprir sua meta de administrar 1 milhão de doses por dia, seriam necessários 220 dias para vacinar esse contingente da população com a CoronaVac ou com a AstraZeneca, vacinas essas que necessitam de duas doses. Ainda que demorasse algo em torno de um ano para atingir a imunidade de rebanho, o objetivo almejado de barrar a epidemia seria alcançado, contanto que a vacina conferisse imunidade total e duradoura.
O grande problema está nesta última suposição. A maior parte das vacinas não confere imunidade total. No caso da CoronaVac, os estudos clínicos mostraram uma queda de 50% de contaminações do grupo vacinado com relação ao grupo não vacinado[13]. Isso significa que alguns indivíduos vacinados no estudo clínico se infectaram; exatamente 90 indivíduos dos 4953 vacinados com duas doses. Dos que se infectaram, nenhum morreu ou desenvolveu sintomas severos, embora 5 dos 90 tenham precisado de atenção médica. Portanto, demonstrou-se também que a CoronaVac confere maior proteção patogênica após a infecção. Do ponto de vista clínico esta proteção é desejável e útil, mas do ponto de vista epidemiológico não é claro se os vacinados infectados transmitem menos. Considerando que os infectados vacinados transmitem em média da mesma forma que os não vacinados, então é necessário vacinar toda a população para se garantir imunidade de rebanho, aumentando o número de doses para 440 milhões, o que poderia levar um ano e meio ou mais no caso do Brasil. Como há uma previsão de que vacinas mais efetivas sejam entregues em maiores quantidades ao longo do ano, como a da AstraZeneca produzida pela FioCruz, então há alguma chance de que a imunidade de rebanho seja atingida antes. Em todo caso, é pouco provável que a imunidade de rebanho seja alcançada dentro de um período inferior a um ano no Brasil.
Toda essa discussão assume que a imunidade da vacina não decai dentro do prazo necessário para imunizar toda a população. Esse é um outro problema, e ainda não sabemos qual é a taxa de decaimento da imunidade conferida pelas vacinas de COVID-19, simplesmente porque não passou tempo suficiente para saber. Se a imunidade decair, então a vacinação pode não ser tão efetiva quanto desejado. Por último não podemos deixar de mencionar o risco de que a vacina seja menos efetiva contra novas cepas do vírus.
Mesmo no pior dos casos, a vacinação é útil e benéfica para o combate da epidemia. Pelo menos temporariamente, temos certeza de que a vacina diminui a probabilidade de infeção e diminui a patogenicidade da COVID-19. Além disso, a CoronaVac é comprovadamente segura para idosos[14]. O perigo mora na confiança excessiva que as pessoas podem ter na vacina, acreditando que ela confere imunidade vitalícia e total. Essa confiança pode levar a que se exponham mais, fazendo com que o efeito conferido pela imunidade robustecida pela vacina seja diminuído ou talvez até anulado pela volta imediata ao padrão de comportamento pré-pandemia. Por outro lado, há o perigo oposto de que muitas pessoas desconfiem da segurança da vacina sem motivo razoável e não queiram ser vacinadas. Por estes motivos, as autoridades públicas devem ser muito claras e honestas ao comunicar à população as características da vacina, ponderando benefícios e riscos, mostrando suas contraindicações e explicando por que as práticas de proteção individual e distanciamento social devem ser mantidas mesmo após a vacinação.
Marco Antonio Ridenti é doutor em física e docente no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Dedica suas atividades de pesquisa à compreensão da natureza por métodos teóricos e experimentais, e recentemente tem se dedicado ao estudo da epidemiologia matemática.
[1] https://transparencia.registrocivil.org.br/especial-covid
[2] Muitos trabalhos demonstram esse fato. Ver por exemplo a figura 3 desse artigo https://science.sciencemag.org/content/371/6530/741.abstract.
[3] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7271824/
[4] https://www.thelancet.com/journals/langlo/article/PIIS2214-109X(20)30464-2/fulltext
[5]https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0195670121000074?casa_token=f3HzPeXJA8QAAAAA:0X61XOJpzOLAv5RNKfLOBVyFa9F01duxfci5hzX1QAUhIzr9h-W923UkRArPeJQCWyBwPbttSss.
[6] https://www.thelancet.com/journals/lanres/article/PIIS2213-2600(20)30514-2/fulltext
[7] https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/lockdown-funciona-alternativas-quase-tao-eficazes/
[8] https://www.nature.com/articles/s41562-020-01009-0.pdf
[9] https://gbdeclaration.org/
[10] https://academic.oup.com/jtm/article/27/2/taaa021/5735319
[11] https://science.sciencemag.org/content/371/6530/741.abstract
[12] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2214109X20303879
[13] http://www.sinovac.com/?optionid=754&auto_id=927
[14] https://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(20)30987-7/fulltext